Por Françoise Terzian
João Roquette, chairman da Herdade do Esporão, testa 188 variedades de uvas no Alentejo de olho na mudança climática
Sem nenhum exagero, a Herdade do Esporão, um negócio 100% familiar, fundado na década de 1970, está reescrevendo a história do vinho português. O histórico território no Alentejo, com mais de 750 anos e hoje um dos maiores produtores de vinhos do país, prepara-se para dar um salto que o transformará em um modelo de sustentabilidade e biodiversidade. Com muitos aportes de euros em inovação e um campo de teste com quase 200 variedades, a segunda geração da família fundadora investe pesado nos vinhos orgânicos e em um empreendimento que preserva a história e a arquitetura de Lisboa e a combina com a enogastronomia. Um projeto que tem tudo para se transformar em uma grande atração da cena lisboeta a partir de 2025.
Explicando: a Esporão venceu um concurso público que lhe dará o direito de explorar, por 30 anos, um espaço de 6 mil metros quadrados na mais antiga escola de agronomia de Portugal, o ISA (Instituto Superior de Agronomia). Após um ano e meio de obra e 4,5 milhões de euros, a área da Tapada da Ajuda, outrora ocupada por uma geradora de carvão do século 20, terá seu prédio restaurado (para onde migrará a sede da companhia), um museu de agricultura, uma belíssima loja de vinhos e dois restaurantes.
Falar da Esporão é falar dos fortes laços entre Portugal e Brasil, o segundo maior mercado mundial para vinhos da companhia e primeiro para azeites. Em visita recente ao Brasil, o português João Roquette, presidente do conselho de administração da companhia e filho do cofundador, concedeu esta entrevista.
THE PRESIDENT _Vinho, azeite, cerveja artesanal e turismo são as principais áreas de atuação da Esporão. Qual é o maior negócio hoje?
João Roquette – Temos três projetos de vinho no nosso portfólio, que respondem a 75% do faturamento. O restante é azeite, por volta de 20%, e os outros 5% de turismo. Os projetos são: Herdade do Esporão, o primeiro que começamos, nos anos 1970, no Alentejo. Depois, veio a Quinta dos Murças, no Douro. E temos o projeto da Quinta do Ameal, de vinhos verdes, no Minho. São três produtos que se complementam. No Alentejo, temos um portfólio com Alandra e Monte Velho, com uvas adquiridas de outros produtores e marcas de maior volume. Já a marca Esporão é feita exclusivamente com uvas das nossas propriedades.
Vocês estão entre os top três entre os produtores de vinho em Portugal?
Sim, entre os top três de vinhos de mesa. Contando todos os produtores de vinho do Porto, estamos entre os top cinco. Em valor, a Esporão é uma das marcas de vinho português mais vendidas no Brasil e, em volume, Monte Velho.
Quais os maiores mercados da companhia?
Em vinho, Portugal é o número um, seguido pelo Brasil e, na sequência, pelos Estados Unidos. No Brasil, temos nossa empresa, a Qualimpor, responsável pela importação e distribuição. Já em azeite, o Brasil é nosso mercado número um. Portugal é o dois.
Como anda o interesse do consumidor brasileiro pelos seus vinhos?
Em 20 anos acompanhando esse mercado, noto um crescente interesse por vinhos no Brasil. Há uma maior democratização da bebida. No entanto, o consumo per capita ainda é muito baixo. São por volta de 13 litros per capita, diante dos 40 de Portugal. Acredito que esse consumo continuará a crescer.
Como foi o desempenho do faturamento no ano passado?
Mais ou menos igual a 2021 e 2022. Foram 52 milhões de euros.
Esse valor é global e se refere a tudo? Vinho, azeite, turismo?
Global. E foi quase igual ao de 2022. Crescemos muito. Na pandemia, fomos de 40 milhões de euros para 46. Depois chegamos a 52 milhões, em 2022. Crescemos muito bem em 2020, 21 e 22.
Qual sua previsão para 2024?
Vamos chegar aos 56 milhões de euros. O portfólio composto de rótulos mais caros avançou mais que os de entrada. Vinhos orgânicos, por exemplo, passaram a crescer mais rápido.
Os vinhos orgânicos já são uma categoria representativa no faturamento?
Sim, até porque todos os vinhos feitos com as nossas uvas são orgânicos. E os demais rótulos estão em processo de conversão. É uma questão técnica, porque há lugares em que é difícil fazer a agricultura orgânica.
Quando começou a transição para vinhos orgânicos?
Em 2007. Ela demorou 12 anos para se concretizar, mas fez de nós um dos maiores produtores de vinho orgânico do mundo.
O que os motivou a migrar para o orgânico?
Foi uma decisão de qualidade. Tomates, morangos, peras e alfaces, quando cultivados na agricultura biológica, têm mais sabor. E o vinho é feito com fruta, com uvas. Há razões técnicas muito claras relacionadas à qualidade.
Produzir vinho orgânico é mais custoso?
Sim, custa um bocadinho mais, mas não é nada dramático. O foco da Esporão sempre foi produzir os melhores produtos possíveis. E a agricultura orgânica é o único modelo que nos permite olhar para a terra e garantir que daqui a 40 anos continuaremos a ter qualidade nos nossos solos para produzir.
Apesar do crescimento do faturamento, a lucratividade tem acompanhado?
Sim. Agora, no entanto, tivemos um pico de taxa de juros, que está a pesar um pouco nos custos financeiros da empresa. Mas felizmente já começou a corrigir.
Hoje você o presidente do conselho de administração da empresa. Há um CEO ou o modelo desenhado por vocês é diferente?
Não temos mais um CEO. Fui CEO durante 17 anos e agora temos um modelo de governança no qual eu sou o chairman e tenho quatro executivos, que se reportam diretamente a mim. Estão divididos por áreas como marketing e vendas, operações, sistemas de informação e financeiro. Estou numa posição em que trato de garantir que a equipe funcione.
Sua base é o Alentejo?
Lisboa. Temos 40 pessoas em Lisboa, no nosso headquarter. E 250 no Alentejo, para onde viajo toda semana. São 170 km de distância. Além disso, também temos dez pessoas no Ameal, dez nos Murças e umas 40 na Qualimpor, aqui, no Brasil.
Como anda a venda de azeites no Brasil, seu maior mercado, e quais seus diferenciais para continuar avançando no país?
O brasileiro é um povo que consome azeite e esse consumo tem crescido. Estamos trazendo variedades novas, como a Cobrançosa, com aromas mais verdes, com cheiro de erva, de relva cortada. Nossa aposta é produzir azeites com azeitonas de castas de variedades do Alentejo. O preço médio da nossa garrafa de azeite no Brasil é de 90 reais.
Da previsão de faturamento de 56 milhões de euros neste ano, quanto o negócio de azeite deve representar?
Faremos 12 milhões de euros com azeite. O Brasil responde por metade disso.
O Brasil passou recentemente por uma mudança de governo. Isso afetou vocês de alguma forma?
Afeta na medida em que afeta a economia brasileira. Em 20 anos aqui, vi o país passar por vários ciclos políticos, crises mais profundas, menos profundas. Trata-se de uma economia muito forte, mas suscetível à política. A sociedade brasileira vive muito a política.
E em Portugal não é tanto assim?
Também é, mas há mais estabilidade política por lá. Ou seja, não é tão extremado como eu tenho visto aqui.
Vivemos na era do ESG e vocês já vêm nessa caminhada do vinho orgânico. Como fica essa questão daqui para frente?
Eu comecei a trabalhar na Esporão em 2006 e atuar com vinhos orgânicos foi a primeira coisa que veio comigo. A agricultura é uma atividade com um impacto ambiental muito grande. Conduzimos vários projetos, sendo que o maior deles foi a transformação de 600 hectares de vinha em agricultura biológica. Iniciamos em 2007 e terminamos em 2019. Se continuássemos a pôr produtos químicos na nossa agricultura, não poderíamos dizer a ninguém que estamos a tentar fazer qualquer coisa pela sustentabilidade do planeta. Então fizemos um projeto muito grande de gestão de água, um investimento muito grande em painéis solares, para produzir energia própria, e retiramos uma quantidade enorme de peso das garrafas. Também tiramos a tinta das caixas dos vinhos e mexemos na rolha.
De olho no futuro…
Como a gente projeta os próximos 50 anos de um negócio que tenha o mínimo impacto sobre o planeta, que torne os produtos positivos para as pessoas, que dê satisfação aos trabalhadores e que permita continuar gerando riqueza para reinvestir? Vemos uma alteração de consumo nas gerações mais novas, que pensam na saúde e em produtos mais naturais.
Provavelmente, vocês terão que fazer alguns ajustes.
Sim. Tem a ver, por exemplo, com a compra de vinhas em sítios mais protegidos das alterações climáticas. E com o investimento em regiões mais frescas e trabalhar o álcool dos vinhos para que ele seja cada vez menor.
Dá para fazer com um teor alcoólico mais baixo?
Com certeza. Se você produzir vinho numa zona mais fresca, o álcool vai ter menos açúcar das uvas e menos álcool no fim.
Vocês já estudam isso?
Claramente. Temos um campo de teste na Esporão de 11 hectares e 188 variedades de uva. Dividimos esse campo em três – sem rega, com pouca rega e com muita rega de água. E todos estudamos o comportamento das castas, das alterações climáticas, do regime de rega, das doenças, para depois usar as mais resistentes nas nossas vigas. Em um ano mais quente será possível verificar quais uvas conseguiram fazer vinhos com menos álcool. Ou, em um ano com pragas, quais foram as mais resistentes.