The President

A inovação está bombando

entrevista

A inovação está bombando

O cardiologista Fernando Bacal, vice-presidente do Hospital Israelita Albert Einstein, entusiasma-se com os avanços da tecnologia em torno dos transplantes de coração

Por Walterson Sardenberg S

“Você só vai considerar a alternativa do transplante de coração quando as outras já foram esgotadas. É um momento decisivo”, admite Fernando Bacal. “Por outro lado, é uma grande porta que se abre para oferecer ao paciente a chance de viver mais e melhor.” O transplante de coração é um assunto diário nas conversas do médico paulistano Fernando Bacal, 58 anos. Pudera. Além de vice-presidente do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, ele é o coordenador do programa de insuficiência cardíaca e transplante da entidade, conhecida pela excelência dos serviços. Não só. Também é diretor do Núcleo de Transplantes do Instituto do Coração e professor universitário de cardiologia, da Universidade de São Paulo e do próprio Einstein.Bacal foi graduado pela Unisa e realizou duas residências, em clínica médica no Hospital das Clínicas da FMUSP e em cardiologia no Instituto do Coração (InCor). No entanto, ele já tinha planos de se tornar médico ainda garoto, quando gostava de envergar a camisa do Santos Futebol Clube nas partidas com os coleguinhas de escola. Os laços familiares explicam parte dessa aptidão. “Meu pai foi cardiologista. Ele tinha quatro irmãos. Todos eles médicos”, resume. Entusiasmado pela profissão, Bacal tem motivos a mais para estar animado: os impactantes avanços das técnicas e da farmacologia na área dos transplantes de coração, assim como das parcerias público-privadas na saúde. Ele vê a chegada de uma nova era, revolucionária, na cardiologia.

THE PRESIDENT _ O senhor trabalha com transplante desde 1993. Há 32 anos, portanto. De lá para cá, quais foram as grandes evoluções?

Dr. Fernando Bacal – Primeiro, a técnica cirúrgica. Havia a clássica, a bicaval. Houve uma evolução, fazendo com que o coração se adapte melhor quando é colocado no peito do receptor, tornando-o mais próximo do funcionamento do órgão original. Em segundo lugar, o surgimento dos novos imunossupressores, remédios melhores para o controle da rejeição. Com esses avanços, os resultados dos transplantes avançaram muito. E se abre ainda a perspectiva que estamos vivenciando agora, a do xenotransplante, a utilização do transplante de órgãos de animais modificados geneticamente para humanos. Será uma grande revolução. 

Como funciona?

Recorre-se à tecnologia de clone. Você desenvolve um embrião já com as células do paciente e os utiliza no coração do porco. Assim se produzem órgãos que podem ser transplantados. Isso melhoraria muito a questão da fila, do tempo de espera. Ainda não é realidade, mas entre cinco e dez anos essa tecnologia estará dominada.

As primeiras experiências mostraram resultados positivos? 

Do ponto de vista do funcionamento do coração, sim. Mas os pacientes não sobreviveram muito tempo. Ainda tiveram algumas rejeições, infecções. Compreende-se. Estamos fazendo transplante de outra espécie em humanos. Mas já se abriu a perspectiva de entender onde se pode fazer os ajustes para que o transplante funcione por tempo muito longo. É um desafio para os próximos anos. 

Trata-se de uma raça especial de porcos?

É uma raça neozelandesa, menor, produzida por clone. A tecnologia de modificação genética vem sendo desenvolvida pela mesma equipe da ovelha Dolly, time que hoje trabalha nos Estados Unidos. O coração suíno tende a ficar cada vez mais similar ao do órgão humano.

Como funciona o Proadi-SUS, o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde?

É uma saudável parceria entre o Ministério da Saúde e hospitais brasileiros de excelência. Além do Einstein, participam outras instituições, como o Sírio-Libanês, o Oswaldo Cruz, a Beneficência Portuguesa, o Moinhos de Vento (no Rio Grande do Sul). A ideia básica é utilizar verbas vindas da renúncia fiscal para projetos em conjunto com a saúde pública, com o SUS. No caso do Einstein, colaboramos, por exemplo, com programas de assistência remota às populações indígenas e ribeirinhas da Amazônia, por meio da telemedicina. E temos um programa muito grande de transplantes. Nós, um hospital privado, fizemos aqui dentro mais de 6 mil transplantes de órgãos em parceria com o SUS, sem ônus para os pacientes. 

Quais são hoje os desafios de logística para o transplante?

Transplante é logística, o que se torna ainda mais complicado em um país continental como o Brasil. O tempo de isquemia de um coração, ou seja, o intervalo entre a retirada do órgão do doador e o de transplante no paciente é de, no máximo, quatro horas. Então, se eu gasto muito tempo em transporte terrestre, perco a chance de o órgão funcionar a partir do momento da cirurgia. Por isso, acima de 100 km de distância, recorremos a helicópteros e aviões. São parcerias com a FAB (Força Aérea Brasileira), com os helicópteros da polícia, com companhias aéreas e fretamentos de aviões com verbas da Secretaria da Saúde. Há outros fatores complicadores. Não existe, por exemplo, um centro ativo de transplante de órgãos na Região Norte. Se você mora no Amazonas ou no Pará, terá que se mudar para outra região para esperar o transplante. 

Há alguma estatística de quantos corações já foram perdidos?

No Brasil, temos utilizado entre 10 e 15% dos corações ofertados. Muitos dos doadores estão em condições de cuidado que não são ideais, em hospitais muito periféricos, sem exames. Às vezes, não tenho um simples ecocardiograma para avaliar a função do coração. É preciso, portanto, melhorar a estrutura de captação de órgãos, torná-la mais orgânica e mais efetiva. Nunca será o aproveitamento de 100%, porque por vezes o doador tem trauma no tórax e o coração está machucado. Ou, outro exemplo, o doador tinha antecedentes de doenças cardíacas e não podia ser doador. Mas o percentual que almejamos é chegar a 30, 40%. Se fizermos isso, triplicaremos o número de transplantes. 

“Após o transplante de coração, o paciente pode voltar a uma vida praticamente normal e até praticar esporte.”

Qual é a diferença entre a demanda e a oferta de transplantes?

Cerca de 1,6 mil pacientes ao ano precisariam de um transplante de coração, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos.
E hoje fazemos de 450 a 500 cirurgias anualmente. Há problemas como o paciente que não foi encaminhado, quem sabe, porque o médico que o diagnosticou não identificou a gravidade da situação. E existem os pacientes que morrem, infelizmente, esperando o transplante. 

É preciso mais campanhas para a doação de órgãos?

São fundamentais para a conscientização da população. Hoje o aceite de órgãos é por volta de 40 a 45% das famílias. Ou seja, 55% das famílias negam a doação. Essa resistência passa por inúmeros aspectos. Questões religiosas, por exemplo. Ou questões do esclarecimento da morte encefálica. Esse é um ponto muito crítico. A morte encefálica é um processo irreversível, ainda que o coração continue batendo. É preciso que a população saiba, também, que o processo relacionado ao transplante é muito sério e transparente. Tudo é auditado pelo Ministério Público, pelas equipes de transplante, pelas Secretarias de Saúde. Recebe o transplante primeiro no país quem está esperando há mais tempo, respeitando a compatibilidade de tipo sanguíneo e os critérios de prioridade. No caso do coração, se tenho um paciente mantido vivo com máquinas, ele está na frente de todo mundo. Está na frente de um paciente que espera o transplante em casa ou com medicamentos na veia. 

Que argumentos usar para fazer com que as famílias aceitem doar órgãos do parente morto?

Mostrar como o órgão pode prolongar a vida de outras pessoas. Isso também prolonga a memória da pessoa que morreu. As campanhas precisam explicar como funciona o transplante, apontar exemplos de paciente que voltaram à vida plena. É importante também que as famílias conversem sobre o transplante em casa. A partir do momento que a pessoa se manifestou um dia favoravelmente à causa, na eventual tragédia de uma morte inesperada, será mais fácil a família aceitar a doação. Já as leis de obrigatoriedade não fazem parte da cultura brasileira. Não funcionam. Acho que a melhor situação é a conscientização da população de que a doação é um ato de amor, de compaixão.

Há restrições de faixa etária para transplante?

Nos Estados Unidos, sim. Dificilmente alguém com mais de 65 anos é transplantado por lá. No Brasil, não. Aqui a idade não é um critério de prioridade. Você faz uma avaliação e avalia se o transplante vai oferecer àquela pessoa a chance de viver mais, de viver melhor. Assim ela passa a ser candidata a transplante. Claro que é fundamental avaliar a compatibilidade de tipo sanguíneo e de tamanho. Não adianta, por exemplo, alguém de 100 kg receber um coração de uma criança de 10 anos. 

Qual é a probabilidade de um transplante de coração ser bem-sucedido?

Hoje, 90% dos transplantes têm sucesso. Há 10% de risco. O risco ainda é alto, mas vale a pena corrê-lo se as condições de vida do paciente foram muito limitadoras. Poucas intervenções na medicina são tão impactantes na vida de uma pessoa como o transplante. De coração, ainda mais. Antes da cirurgia, a pessoa tem limitações até para tomar um banho. Está toda hora no hospital, precisa tomar diurético, não consegue se alimentar, sofre falta de ar em qualquer situação. Após o transplante, passa a ter uma vida muito próxima do normal, inclusive podendo fazer esporte de competição. Há jogos olímpicos de pacientes transplantados. Sinto que o transplante deu certo quando o paciente volta à vida plena, quando retorna para casa, consegue trabalhar, fazer atividades físicas, sentir-se novamente inserido na sociedade. 

Como prevenir os problemas cardíacos?

Há questões genéticas, claro. Se a pessoa tem pai e avô que infartaram precocemente, a mensagem também é que busquem o check-up mais cedo. Mas os hábitos do dia a dia são fundamentais. Exercícios físicos aumentam a expectativa de vida. Não fumar, idem. É preciso controlar a pressão, o diabetes, o colesterol, a obesidade, a qualidade de sono, o estresse. Estudos mostram que estar com amigos, ter aquela confraria, aquele convívio com pessoas na família, traz bem-estar e faz com que as pessoas vivam mais. É um estudo da Universidade de Harvard. 

Como está o Brasil em relação a outros países em número de transplantes?

Temos mais de 40 mil brasileiros em fila de espera de transplantes em geral. A maioria esperando o rim. Hoje, reiterando, 450 brasileiros esperam um transplante de coração. Precisamos de uma logística melhor, captação mais efetiva, com mais doações com o aceite das famílias. Necessitamos abrir mais centros de transplante em regiões ainda carentes e continuar o apoio governamental do SUS. Importante também é incentivar a iniciativas de empresários, que auxiliem em fretamentos de aviões que, por vezes, ficam ociosos nos hangares. 

O brasileiro é solidário?

Sim. A gente sempre acha que podia ser mais, mas acredito que o brasileiro é solidário, tem compaixão, um entendimento de quanto pode ajudar o próximo. Isso se reflete no fato de o Brasil ser um dos países que mais transplantes fazem no mundo.

O que pode vir em tecnologia nos próximos anos para revolucionar ainda mais a medicina?

A tecnologia e a inovação são muito importantes na área da cardiologia e, em especial, no transplante. Para a captação de órgãos, por exemplo, já existem, nos Estados Unidos e na Europa, aparelhos portáteis que aumentam o tempo de isquemia do coração. Eles bombam o órgão. Assim, o prazo de quatro horas pode ser estendido para dez horas. Em um país do tamanho do Brasil, essas máquinas – que infelizmente ainda custam muito caro – são providenciais. Outra evolução é a possibilidade de fazer diagnósticos de rejeição com métodos menos invasivos, sem precisar de biópsia do coração. Hoje o exame de sangue Cell-Free DNA mostra se o paciente está rejeitando ou não o novo órgão. Há também novos remédios com menos efeitos colaterais. A área do transplante está em profunda transformação. 

Fale mais sobre o papel do Einstein na parceria público-privada.

Nosso hospital está numa posição de liderança na América Latina. Em vários rankings, ele desponta como o melhor da América Latina, o mais inovador. Queremos levar uma gota do Einstein para cada brasileiro, em várias regiões do país. Em São Paulo, administramos vários hospitais públicos, como o Hospital do M’Boi Mirim, muito importante numa região bastante carente. Também o Vila Santa Catarina, hoje um centro oncológico, inclusive com cirurgias robóticas para o SUS. Abrimos ainda parcerias com governos de outros estados. Administramos o Hospital Ortopédico da Bahia, o Hospital de Aparecida de Goiânia, com resultados espetaculares. Essa é uma marca do Einstein, da responsabilidade social, da parceria público-privada. O Einstein cresce fora dos muros do Morumbi e de suas unidades avançadas pela cidade de São Paulo. É um sistema de saúde que também se preocupa em ensinar e formar profissionais. 

Como assim?

Temos a Escola de Enfermagem, a Faculdade de Medicina, a Faculdade de Fisioterapia, de Psicologia, de Odontologia, de Administração Hospitalar. Oferecemos cursos de gestão, de pós-graduação. A pesquisa do hospital também avança muito. O Einstein teve um papel importante em estudos de covid publicados nas principais revistas do mundo. Hoje, o nosso Centro de Pesquisa é um Academic Research Organization, faz estudos multicêntricos, em parceria com instituições internacionais. Já o Eretz.bio é a Unidade de Inovação, em parceria com as startups. No mais, muita gente imagina que o Einstein só atua como um hospital de elite. Não é assim. Temos mais leitos em parceria com o SUS do que uma área exclusivamente privada.