Assim os fãs do automobilismo se referem à charmosíssima Mille Miglia Storica
Por Walterson Sardenberg Sº
Sim, há corridas muito mais famosas. Por exemplo: as 500 Milhas de Indianápolis, as 24 Horas de Le Mans e o Grande Prêmio de Mônaco de Fórmula 1. No entanto, nenhuma delas tem o charme insuperável da Mille Miglia Storica. Ela é disputada todos os anos, à beira do verão italiano, em estradas que ligam Brescia a Roma, na Itália, com passagem por Rimini, a cidade de Federico Fellini. É a corrida mais bela do planeta, segundo os genuínos fãs do automobilismo.
Para começar, a Mille Miglia Storica está repleta de história, como o nome prenuncia. Embora tenha dado a largada em 1977 – há 47 anos, portanto –, ela remonta à competição original, disputada entre 1927 e 1957, com compreensíveis interrupções em virtude da Segunda Guerra Mundial e de terríveis acidentes.
Ela cumpre essa homenagem à risca, e não apenas no nome. Para inscrever-se entre os competidores, afinal, exige-se do candidato um veículo que tenha disputado a corrida histórica em seu período áureo, ou seja, até o ano de encerramento – leia-se 1957. Em outras palavras, trata-se de uma prova para colecionadores de relíquias automobilísticas, ou um amigo deles.
Para os espectadores, é a chance de ver na ativa bólidos admirados, nos dias correntes, apenas estacionados em museus, inertes. Sobretudo sobreviventes das marcas italianas Alfa Romeo, Bugatti, Ferrari, Lancia e Maserati, embora também concorram veículos de outras fábricas europeias de peso, a exemplo da britânica Jaguar e das germânicas BMW, Porsche e Mercedes-Benz.
A Mille Miglia original foi uma prova dominada pelos italianos. Em todas as edições, somente duas vezes foram levados ao topo do pódio pilotos nascidos fora da Península: o alemão Rudolph Caracciola (sim, com um sobrenome oriundi, ganhador da edição de 1931) e o inglês Stirling Moss (1955). Um adendo: eram carros com dois lugares e, portanto, dois pilotos. Façamos a justiça de lembrar que Caracciola dividiu os louros com o copiloto Wilhelm Sebastian, assim como Moss, em dupla com o conterrâneo Denis Jenkinson.
Eram os tempos românticos de nomes como Alberto Ascari, que venceu nada menos que 47 das 56 corridas internacionais que disputou. Há quem o considere maior que o argentino Juan Manuel Fangio – uma heresia, para outros tantos. Ele era tão perfeito à direção que o chamavam “o Concertista”, como se dominasse as pistas como Verdi e Rossini reinavam no Scala de Milão.
Outra figura lendária foi Carlo Pintacuda, que chegou a correr no Brasil. Afeiçoado à América do Sul, decidiu, aposentado, morar na Argentina. Ao morrer, longe das pistas e próximo das batatas, era proprietário de uma modesta mercearia em Buenos Aires.
Ainda mais lendário, Tazio Nuvolari ganhou do poeta Gabrielle D’Annunzio o emblema de uma tartaruga de ouro, com a seguinte dedicatória: “Para o homem mais rápido do mundo, o animal mais lento”. Passou a usá-lo no macacão, como amuleto.
Também reluzente nesse panteão, o britânico Stirling Moss morreu em 2020, aos 90 anos. Diferentemente de Alberto Ascari, ele não se sagrou campeão de Fórmula 1, mas deixou um legado ainda insuperável, além do título de nobiliárquico de “sir”: é dele o recorde de tempo da Mille Miglia.
Foi conquistado em 1955, quando venceu a prova à frente de Juan Manuel Fangio, o segundo colocado. Moss cruzou a linha depois de dez horas e oito minutos de pé embaixo. Vale lembrar que o primeiro vencedor das Mille Miglia, em 1927, foi Giuseppe Morandi. Completou o circuito em 21 horas e cinco minutos.
Alberto Ascari, Stiling Moss, Juan Manoel Fangio e Tazio Nuvolari são alguns dos nomes históricos que já disputaram as Mille Miglia
Para ter uma ideia da façanha de Moss, lembremos que mil milhas equivalem a 1,6 mil quilômetros, a distância entre Rio de Janeiro e Salvador pela Rodovia BR-116. A diferença é que o piloto britânico e seu copiloto não seguiram por rodovias em linha reta, mas naquelas muito sinuosas – e ainda mais poeirentas.
A alta velocidade, associada a estradas pouco afeitas a ela, bem como a perigosa proximidade do público, foi a mistura explosiva que determinou o final da era clássica da Mille Miglia. O estopim: o estouro de um pneu da Ferrari Sport Scagliettei, conduzida pela dupla Alfonso de Portago e seu copiloto, Edmund Nelson, na prova de 1957. Uma tragédia.
Acima, o ator brasileiro Gabriel Leone viveu o papel do piloto Alfonso de Portago no filme Ferrari. Ao lado, Adam Driver no papel título. Abaixo, o centro de Siena
Na ocasião, morreu não apenas a dupla de competidores. Também faleceram nove espectadores – cinco deles ainda crianças. Era o fim da Mille Miglia original – e de Alfonso de Portago, um espanhol que tinha fama de playboy, título de marquês e muitas namoradas famosas, incluindo a atriz Linda Christian. O piloto foi vivido nas telas no ano passado por Gabriel Leone, no filme Ferrari, de Michael Mann. O jovem ator brasileiro, por sinal, pegou gosto pela velocidade. Tanto que viveu Ayrton Senna na recentíssima série Senna, em exibição na Netflix.
Ao retomar seu trajeto em 1977, duas décadas depois do fim estridente, a prova Mille Miglia tomou uma resolução providencial. A contabilidade de 56 pessoas mortas em seu período clássico pesou na decisão. A competição deixou de ser um rali de velocidade para se tornar um rali TSD (tempo, velocidade, distância), muito menos perigoso. Ganha não quem chegar em primeiro, mas quem cumprir horários precisos em cada etapa do percurso. Em outras palavras, o navegador passa a ser mais importante que o piloto.
Quem liga? Muito mais importante que a vitória é reviver (ou ouvir pela primeira vez) os roncos de uma Mercedes-Benz 300 SL, de uma Ferrari 250 GT Coupé Boano ou de uma Bugatti Type A. Aliás, o sucesso da corrida mais bela do mundo já provocou cópias oficiais. Até mesmo na China, onde uma será disputada entre os dias 14 e 17 de novembro. Não custa lembrar que em 1927, quando a Mille Miglia começou, o gigante oriental ainda era um país, na prática, feudal.
Mais sentido fará a cópia dos Estados Unidos. Em 22 de fevereiro de 2025, começará, na Flórida, a 1000 Miglia Experience. O trajeto prevê a saída de Miami, passando pelos pântanos das Everglades, seguindo por Naples, Saint Petersburg, Cabo Canaveral e West Palm Beach, antes de retornar a Miami.
Ok, a Flórida já tinha uma prova longa e clássica, os 500 Km de Daytona (ou Daytona 500), no circuito do mesmo nome. Mas quem resiste ao charme de uma Mille Miglia?